PRÓXIMA ESTAÇÃO
- Daniel Fernandes
- 11 de fev.
- 3 min de leitura

PRÓXIMA ESTAÇÃO ...
Empurrões, aperto, movimento. A manada entrou no trem. As barras de ferro conduzindo para que a ordem surgisse do caos, contendo a avalanche humana. Empurrado, empurrou. Esmagado, esmagou, e entrou finalmente no vagão. Poderia resistir à massa? Achava que não. A força daquela maré de corpos era irresistível. Lembrou-se de ter visto um filme na TV onde o gado era levado para o matadouro e sorriu com a comparação. O importante é que estava a caminho de casa.
PRÓXIMA ESTAÇÃO ...
A voz fanha e mole do condutor denunciou a má vontade. A massa de carne ia sendo acomodada pelos movimentos do metrô, cada um buscando no seu próprio interior um pouco de isolamento, perdido nos universos de seus pensamentos. Universos estanques e incomunicáveis. Mundos em colisão. Corpos em íntimo contato. Tão próximos e tão distantes. O cheiro de suor misturado com o dos perfumes, que ainda resistiam após um dia de trabalho, tornando a atmosfera densa, palpável, acre. Ajeitou a mochila, temendo que a marmita se abrisse. Talvez fosse o único voltando para casa com a marmita cheia, jeito encontrado para diminuir a fome da família. Comer só um pouquinho da quentinha dada pela construtora e o restante levar para a mulher e o filho. Não comeu o suficiente, mas os seus teriam a oportunidade de jantar. Sorriu satisfeito apesar da fome que sentia.
PRÓXIMA ESTAÇÃO ...
O movimento de passageiros tentando sair e entrar, causou um burburinho, uma onda de carne e corpos reverberando pelo vagão. Resmungos, alguns palavrões cochichados e a calma retornando com o fechar das portas. Preocupava-se em chegar cedo ao barraco. Precisava estar em casa antes do toque de recolher imposto pelos donos da favela. Não era seguro chegar fora do horário. Precisava estar dentro dos limites traçados, antes que o bairro fosse considerado fechado pelos que mandavam. Sentia-se preso. Intoleravelmente preso, mas incapaz de mudar o que quer que fosse. Era a lei dos ilegais e tinha que se submeter a ela. O mundo em que vivia não era cor-de-rosa. Algumas vezes era vermelho. Do sangue daqueles que ousaram desobedecer. Ele tinha família. Ele tinha medo. Ele obedecia.
PRÓXIMA ESTAÇÃO ...
Poucos passageiros desceram, alguns tentaram subir sem êxito e o trem prosseguiu coleando. Serpente saciada regurgitando lentamente os restos de suas presas. O calor abafado o incomodava. Não suportava o calor. Trazia lembranças doloridas. Lembranças são coisas más. Pelo menos ele não conhecia nenhuma que pudesse chamar de boa. Calor, fogo, incêndio, imagens de caos e dor. O coração acelerado pelas recordações tristes o fez ansiar por chegar logo ao destino. Era difícil passar o dia todo fora de casa sem meios de ter notícias da mulher e do filho. Tentou não lembrar de como perdeu a família anterior num incêndio da favela. A sensação de chegar em casa e no lugar do lar encontrar um terreno enegrecido e soltando fumaça. A busca frenética pela esposa e filhos, e a notícia trágica dada pelos vizinhos. Sentiu os olhos lacrimejarem e procurou mudar o curso dos pensamentos. A favela fora reconstruída, ele ainda tentava se reconstruir. Nova esposa, novo filhinho, dores e medos antigos. Saudade.
PRÓXIMA ESTAÇÃO ...
O número de passageiros, agora, já permitia dizer que o trem estava apenas lotado. Muitos já haviam descido e buscavam chegar aos seus lares, lutando bravamente por um lugar nos ônibus, também, lotados. O movimento do trem embalava a multidão restante. Lembrou de outro filme que viu. Este bem pior do que o anterior. Eram trens que carregavam pessoas. Trens lotados, sem conforto algum, sem qualquer preocupação com os passageiros. Trens que abasteciam campos de concentração nazistas. Levavam homens entristecidos, mulheres de olhares assustados, crianças sem riso e velhos sem amparo. Recordou das cenas do filme e sentiu um arrepio apesar do calor. Olhou em torno observando os companheiros de viagem. Viu os mesmos rostos tristes, as mesmas vidas sofridas. Destinos, se não os mesmos, muito, mas muito similares. E em cada olhar ensombrado a mesma falta de esperança.
PRÓXIMA ESTAÇÃO ... AUSCHWITZ.
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